segunda-feira, 8 de agosto de 2011


                                            A REVOLTA DE BATU

              (Do Livro “CONTOS DO ENTARDECER” – CAPÍTULO VI – autor: Jansen Leiros – 1983 – FJA)

Adentrando-se pelas florestas litorâneas da Guiné, dominava a tribo Utanda. Era nação numerosa e subdividida em grupos familiares, que fixavam suas tabas às margens dos rios da região, sob o comando geral de Zuluanda, Rei poderoso e bravo.
A vida no continente agitava-se pelas incursões do europeu mercenário e àquela altura o comércio de escravos negros tomava vulto. Em razão disso as tribos litorâneas começaram a interiorizar suas tabas buna corrida de preservação da liberdade comprometida.
Batu era um guerreiro da tribo Utanda. Alto, forte, espadaúdo, expressão dura e altiva, liderava um grupo consangüíneo. Por sua bravura, havendo orientado a retirada da taba para além do rio Bami, reuniu dezenas de guerreiros que, sob seu comendo, dirigiram-se à praia, nas proximidades da enseada mais próxima. Com as cores da guerra, aproximaram-se silenciosamente do acampamento português, situado pouco além do coqueiral. De longe, viam-se as silhuetas de duas caravelas ancoradas a, aproximadamente, cem metros da praia, onde duas barcaças estavam amarradas às pedras.
Batu deslizou pelas areias finas e alvas em direção às barcaças. A noite estava escura e nublada. Os portugueses dormiam. Achegou-se à primeira embarcação e cortou-lhes as cordas. Ficando os pés no chão, fez hercúleo movimento e a barcaça deslizou até às águas, silenciosamente. A mesma coisa fez com a segunda. Ao seu sinal, o grupo caminhou pela escuridão e tomou os botes, rumando para os navios ancorados.
Meia hora depois, abordaram a primeira caravela. Contornaram-na até a corda que pendia do convés, iniciando a subida. Batu subiu na frente, destemido e valente, seguido dos demais.
Tudo era silêncio naquela caravela. O guarda mais próximo dormia a sono solto. Batu, utilizando afiado punhal, despachou-o e seguiu em frente, silencioso qual tigre traiçoeiro.
Seu objetivo era destruir os navios, onde estavam os arsenais portugueses e, depois, enfrentar a marujada de terra. Mas a sorte não estava do seu lado. Os navios não se encontravam vazios; um comando de cinqüenta homens permanecia a bordo. De inopino Batu e seus homens viram-se cercados. Não havendo outra saída, partiram para a luta.
Sangrenta e encarniçada foi a disputa, mas os portugueses, em maior número, terminaram por dominar a situação, prendendo o líder e mais dois guerreiros sobreviventes.
Os porões estavam repletos. Mais de uma centena de negros se acotovelava sobre o piso úmido e sujo dos navios. Amarrados, loucos de indignação, agora se constituíam mercadoria humana.
Era o mês de maio, quando as caravelas chegaram ao porto português. A burguesia esperava ávida o desembarque do gado humano, rumo ao mercado de escravos. Quem, mais sensível, não poderia assistir aquela cena terrível.
Entre os prisioneiros, caminhava Batu. Seu porte era impressionante, quase majestoso. O semblante, porém, traduzia a humilhação que lhe impunham os brancos.
Na manhã do dia seguinte, a praça do mercado estava apinhada de gente. Carruagens e caleças estacionavam ao largo. Teve início o leilão. Quase ao meio-dia, Batu foi leva à mostra. Pela sua estampa, muitos se interessavam por ele. Os lances se sucederam e finalmente nosso personagem foi arrematado por rico senhor de Barcelos. O pobre negro não se continha de tanta indignação. Por dentro blasfemava contra os deuses e preferia morrer a entregar-se à servidão. Mas era o irremediável. As correntes lhe prendiam o pescoço aos pés. Estava manietado e indefeso.
Três anos se passaram de trabalhos pesados e torturas. Batu era rebelde demais e não se continha diante das atrabiliaridades de seu senhor. Inúmeras vezes foi atado ao tronco e açoitado.
No silêncio das noites lembrava-se da terra distante, quando desfilavam em sua retina mnemônica os irmãos da tribo, sua família, sua noiva fogosa e brejeira, de busto empinado e ancas abauladas. O fel do desgosto lhe chegava à boca e ele alimentava uma revolta quase incontrolável.
Certa tarde, burlando a vigilância dos capatazes, o escravo escondeu-se num galpão de mantimentos e esperou o anoitecer para por em prática o plano que urdiu nas noites de vigília. Armando-se com afiado punhal, ceifaria a vida do cruel e desumano senhor.
Terminada a ceia, a criadagem se aproximou do salão para a limpeza costumeira; o negro aproveitou a ocasião e penetrou cuidadosamente na ampla e volumosa biblioteca do casarão, onde Dom Amilcar de Barcelos costumava descansar após as refeições.
Estava a dois passos da cadeira de espaldar alto e trabalhado, prestes a desfechar o golpe fulminante, quando sua mente recordou a cena do navio, momento em que foi aprisionado. Batu exitou e foi nesse instante que tudo aconteceu surpreendentemente. Quatro mãos o agarraram. O negro não reagiu. Eles o haviam seguido.
Manhã alta, Batu estava pendurado ao tronco. Recebera mais de cem açoites. Seu ódio era desmedido. Seu revolta envenenara sua alma. Blasfemava, enquanto seu corpo sangrava e seus olhos injetados já anunciavam pronunciada anemia. À noite, não resistindo, faleceu.
No sono da morte, sentiu-se flutuar sobre a relva de panorâmica colina, até chegar a um recanto arenoso, onde se erguia um prédio de arquitetura muçulmana. Rumou em sua direção e, ao atravessar o portal da construção, viu-se encarnando outra personalidade, agora, um árabe ricamente vestido, barba negra bem cofiada e espessa. Olhar penetrante e altivo, portando reluzente cimitarra. O turbante era de finíssima ceda fenícia; dava-lhe um porte fidalgo e imponente.
Era como se assistisse a um filme do qual fosse o próprio protagonista. Viu-se adentrar-se no belo palácio, passando por luxuoso salão, cujo piso era ricamente decorado e brilhante, e circundado de colunetas rebuscadas. Chegando aos aposentos, dirigiu-se á sacada. Vislumbrava-se um enorme pátio ajardinado e foi nesse instante que o escravo compreendeu seu grande drama.
O pátio estava repleto de pessoas de tipos diversos, na maioria mulheres muçulmanas, aprisionadas e cuidadosamente vigiadas por guardas do governador de Tânger. À sua ordem, uma a uma desfilavam diante de seus olhos lascivos. Aquelas que mais lhe agradavam eram separadas e encaminhadas ao seu harém, as outras, vendidas como escravas, para enriquecer os cofres do poderoso falcão dos desertos.
Batu prostrou-se. Agora entendia as razões de seu sofrimento na existência como escravo. Agora compreendia alguns segredos das leis divinas. Alí, se cumpria a grande lei de causa e efeito e começavam a ter sentido as palavras que ouvira certa vez numa pregação religiosa dos brancos: “A cada um será dado segundo as suas obras.”
Foi então que Batu escutou aquela voz que lhe era intimamente conhecida, doce e meiga, carinhosa e amiga:
“ION, a vida é a mais nobre escola para aqueles que querem crescer. Você tem sofrido muito, mas tem aprendido muito pouco das lições que a providência lhe tem ministrado. Voltarás à Terra. Repetirás a lição. Quem sabe, no entardecer do Ciclo, tu possas constituir o trigo do Bem, na Seara de DEUS.

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“De fato, o Homem tem relutado em absorver as lições ofertadas pelas experiências na vida, na superfície planetária, prendendo-se às ilusões das aparências da horizontalidade, geralmente inócuas. Às vezes, os homens se tornam recalcitrantes, porque não usam os olhos para ver, na profundidade. Nem mergulham nos conteúdos pedagógicos que a verticalidade das lições lhes outorgam, como presentes do dia a dia. Se os homens analisassem a transparência dos exemplos de Jesus, em seu Evangelho, talvez poupassem o tempo que perderam no ontem. E o tempo que possam vir a perder, no trem da eternidade.”



Jansen Leiros






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