FARUK, UM SÚLTÃO BÉRBERE
(Do Livro Contos do Entardecer – Capítulo V – de Jansen Leiros – 1983)
Era noite alta, quando os navios muçulmanos abordaram a costa sudoeste da Península Ibérica. Mais de mil homens formavam o exército de Faruk. Pela madrugada, foi dada a ordem de desembarque e horas depois as praias estavam repletas de guerreiros mouros, dispostos à luta.
Faruk, acompanhado de Nasir Ibn Nusayr, seu grande capitão, lançou-se à conquista da Espanha. Era o início do século VIII.
Faruk era um tipo forte, moreno, barba negra e espessa, olhar penetrante e altivo. Rude de índole, era autoritário e impetuoso, atilado e valente. Nascera em Tânger, na região do Marrocos, após sua conquista pelos árabes, no século VII, descendente de família berbere, cujos domínios estendiam-se até o Saara meridional.
Antigo entreposto e colônia romana, Tânger fora conquistada pelos marroquinos que ali instalaram um califado.
Faruk assumiu a governadoria da cidade e traçou projetos de expansão que envolviam toda a Península Ibérica. Aquela invasão era, pois, a execução daquele plano. O poder assomou à cabeça do sultão. Para ele, dominar era um imperativo, um impulso permanente. O mando, a força e o poder eram sua bandeira. Ele não se continha. Disso decorreram-lhe os maiores desmandos: oprimia os vencidos e era desmedidamente cruel nas sentenças punitivas.
Faruk não se casara, mas reuniu um harém de quase quarenta mulheres. Sua lascívia era incontrolável. Chegou a estabelecer um comércio de mulheres, vendendo-as no mercado de escravas. Qualquer uma que lhe desagradasse, providenciaria sua imediata substituição por outra odalisca que lhe inspirasse desejos, ensejando, assim, novas excursões aos acampamentos beduínos, para roubar-lhes as frágeis donzelas.
Certa feita, montando seu maravilhoso cavalo branco, Faruk resolvera invadir, com apenas vinte homens, numeroso acampamento do deserto. A luta travou-se encarniçada e ele terminou ferido pela adaga ágil do inimigo. Mesmo assim, conseguiu escapar, roubando-lhes, entre outras, uma linda mulher de olhos amendoados e de lábios maravilhosamente sensuais. Impetuoso, Faruk invadira, equivocamente, o acampamento do Califa de Córdoba, seu aliado nas lutas da Península. Esse incidente teve as mais desastrosas conseqüências. O Califa, ultrajado, jurou vingar-se. Meses depois, com numeroso exército, invadiu o porto de Tânger, dominou a cidade, forçando Faruk a abandonar às pressas seu suntuoso palácio e refugiar-se nas densas florestas africanas. A mulher roubada era Saabá, predileta do sultão.
Faruk, habilidoso e político, mandou devolver a presa de guerra, apresentando desculpas ao Califa pelo lamentável equívoco. O Califa perdoou e retirou-se da cidade, após honroso acordo de paz e ajuda recíproca, quanto a Península Ibérica.
Mas, faruk apaixonara-se pela odalisca. Seus encantos o enfeitiçaram. Ele teve ímpetos de não devolvê-la; porém, sua estratégia política lhe impunha fazê-lo.
Por outro lado, Saabá também gostara do berbere. Seus arroubos de jovialidade e seus rompantes viris, ativaram sua sensualidade. Ela tomou-se imensa tristeza quando partiu de retorno ao califado.
Muitos anos se passaram depois do fato. Faruk em nada mudara. O comércio de escravas foi intensificado e seu harém aumentado para quase cinqüenta odaliscas. Ele divertia-se nababescamente; suas orgias eram infindáveis, duravam até semanas, mas sua disposição não se abatia.
Necessitando recompor suas tropas, certo dia fora comprar cavalos a famoso criador de Araich e, quando examinava uns lotes reservados, pôs os olhos no mais belo animal que já havia visto em toda a sua vida. Era uma égua árabe de porte altivo e perfeita estrutura, alva como o jaspe. Faruk quis incluí-la nos lotes selecionados, mas o vendedor disse-lhe da impossibilidade de fazê-lo, pois o animal já estava vendido para outro senhor. Inconformado, Faruk resolveu tomá-la à força, invocando sua autoridade. Todavia, o destino estava contra o berbere. Aquele animal havia sido comprado pelo Califa de Córdoba, para presenteá-la a Saabá, sua favorita.
Dias depois, o suntuoso palácio de Faruk era cercado de surpresa, as cavalarias invadidas e os combates travados no próprio pátio interno da governadoria. O tumulto era grande. As tropas do Califa, mais numerosas, dominaram facilmente a situação, prenderam os guardas sobreviventes e ele assumiu o controle da cidade.
Faruk estivera ausente. Suas tropas, que não excediam cem homens, marchavam sem ânimo sob o sol escaldante. Eles retornavam de uma das excursões costumeiras, em busca de escravas. Num povoado próximo de Tânger, faruk fez pousada para alimentar-se e descansar. Nesse instante, recebe a triste notícia de que havia sido destituído das funções governamentais e que o Califa de Córdoba assumira o poder, dominando a cidade.
Indignado, Faruk retomou o caminho, disposto a defender seus direitos. Era noite quando chegou a Tânger. Distribuiu seus homens e, pela madrugada, empreendeu o ataque ao seu próprio palácio para retomá-lo. O Califa, porém, estava bem armado e suas tropas, numericamente superiores. Pela manhã, o chefe berbere já havia perdido a metade de seus homens. Sua ira crescia. Aquilo era a maior das humilhações. Ele rumou como um louco enfurecido, montando seu maravilhoso corcel, na direção da porta principal do palácio e, cavalgando magistralmente, subiu as escadas palacianas na velocidade em que vinha, ultrapassou o salão das audiências e rumou para a sala dos despachos, onde sabia encontrar-se o Califa. Colérico, cimitarra na mão, Faruk emitiu seu grito de guerra e pulou sobre o adversário com a sanha dos demônios. Travou-se uma luta de titãs. Pouco tempo depois, o Califa caía morto pelos golpes certeiros do contendor.
Seus olhos brilharam de imensa alegria pela grande vitória. Vingara-se. Cimitarra numa mão, adaga na outra, Faruk correu para o lado oriental do palácio, onde a luta continuava. Quando chegou à sacada, parou de súbito, abriu demasiadamente os olhos e emitiu um gemido quase surdo. Uma adaga magistralmente atirada, sibilou no ar e atingira-lhe o peito, acertando-lhe o coração. Faruk desabou pesadamente pela sacada, caindo ruidosamente entre os vasos do jardim fronteiriço. Estava morto.
Massa disforme e negra movia-se nas cavernas umbralinas. Parecia uma ameba gigante, girando sobre si mesma, impulsionada pelo vento. Em torno dela, vultos negros pareciam sugar-lhe as últimas energias. Do alto, porém, desciam três focos luminosos. Aproximaram-se suavemente e pararam diante do ser amorfo. Enquanto as luzes iam tomando forma humana, os vultos negros desapareciam assustados. As luzes condensaram-se mais e agora, nítidas, eram um homem e duas mulheres, envoltos em halo de profunda paz. Entreolharam-se e uma delas falou: - Foi terrivelmente vampirizado pelos inimigos do passado tenebroso e pelas vítimas que fez na última encarnação. Há quase duzentos anos vem sofrendo esse processo de desenergização. Precisamos suplicar ajuda para ele. Então, aquele que seria a Estrela Guia, ergueu os braços em prece e falou, súplice e ternamente: - Maria abençoada, apiedate dos infortunados. Socorre esse filho transviado dos caminhos do bem e roga a Jesus por ele, pois mais uma vez desceu aos abismos dos desatinos. Abatido pelos sofrimentos, precisa recompor-se para novas caminhadas. Oh mão amorável, suplicamos tua intercessão. E estendeu as mãos em doação de energia, seguido das duas entidades femininas.
Nas trevas densas do umbral, uma luz intensa se fez. Era Maria que abençoava e atendia àquela súplica fervorosa daqueles corações que tanto amavam. Ananias, Miriam e Rachel deram-se as mãos e oraram contritos, agradecendo a santa presença. A forma moveu-se e, como um ovo gigante, dele eclodiu uma forma humana, débil e sonolenta que acordava de um pesadelo de duzentos de anos, em plena escuridão.
Os três espíritos envolveram-no em reconfortante abraço e deixaram os umbrais, em direção à luz, levando desmaiado o desfigurado Faruk, que receberia de Deus nova oportunidade de recomposição perante a Lei Maior.
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