Sonho de um Capelino
(Do livro “Contos do Entardecer” – I capítulo - de Jansen Leiros) 1983
Com a rapidez de um átomo em sua órbita, ele atravessou os espaços siderais e repousou, sonolento e desorientado, numa extensa área deserta.
O mundo ao seu redor era estranho, povoado de areias e céu, sol causticante, ventos que assobiavam sinfonias, horizontes ondulados de dunas. Lá, ao longe do espaço cósmico, entre bilhões de estrelas, cintilava a saudosa Capela, na distante constelação do Cocheiro. O tempo não parecia ter dimensões. Era um hoje eterno, ou um presente de nunca acabar – nostalgia, saudade indefinida de quem ou de onde, deprimente e triste. Olhou ao seu redor e tentou racionalizar os pensamentos dispersos, talvez confusos. Na verdade na se situava no tempo. De onde vinha, há quanto tempo estava ali, que lugar era aquele, que era ele próprio. Um halo de profunda depressão se abateu entre aquela figura cansada e sonolenta. Ele adormeceu.
Os aposentos eram de um luxo indescritível. Tudo refletia a luminosidade do ouro. Havia um leito coberto com finos lençóis de linho da alvura do jaspe. Eles também eram ornados com fios dourados. Através das vigias à guisa de janelas, penetravam os primeiros raios da manhã, tingindo de um brilho azulado a negra cabeleira daquele infante adormecido, em cuja face os olhos amendoados compunham um semblante de tristeza.
Aos poucos despertou, girou sobre si mesmo e sentou-se lentamente à margem do leito, puxou um cordel dourado e ao som metálico de uma sineta, surgiram várias aias a lhe render as homenagens do dia, entoando cânticos e louvores. Era um príncipe. Filho do Rei Sol e a ele eram devidas as reverências à sua nobreza.
Aquele sonho repetia-se constantemente e a cada vez uma tristeza mais profunda abatia-se cobre o jovem príncipe que se tornava cada vez mais nostálgico, isolando-se da convivência dos seus. Havia um paraíso distante que um dia fora seu próprio lar; um paraíso que havia perdido por razões que desconhecia.
Naqueles tempos, a Terra ainda vivia os primórdios da civilização e a luta pela sobrevivência se exercia árdua e perigosamente, tanto quanto a do poder, traiçoeira e sangrenta, fazendo do homem uma fera que pensava. Nesse cenário encontrava-se nosso pequeno personagem, minguado e débil, triste e anêmico, nostálgico e deprimido.
As disposições políticas daquele Império impunham-lhe casar-se com a própria irmã para assegurar a sucessão do trono e aos doze anos consorciara-se com grandes e pomposos festejos.
O novo estado não mudou muito o interior daquele espírito atormentado, apesar dos enlevos e meiguices da esposa-irmã, do ambiente de atenções e respeito, de fausto e fidalguia.
Quem o contemplasse não poderia imaginar o sofrimento daquela alma expatriada. No seu interior, de forma inconsciente explodia uma saudade incontrolável de um paraíso distante. No mapa-zodiacal de sua mente ele parecia procurar a longínqua constelação do Cocheiro, onde reinava a majestosa Capela pelos caminhos do infinito.
Na verdade, considerando-se as condições de vida oferecidas naquela estrela de primeira grandeza, naquele sol cintilante, alfa do Cocheiro, a densidade viscosa e pesada da mãe-terra seria, via de conseqüência, insuportável àquela alma que, apesar da ausência de nobres sentimentos, parecia sensível à natureza e seus segredos.
Esse estado de espírito influiria de forma marcante na vida daquele príncipe, que muitos consideravam em razão daquilo, de fraca personalidade, enfermiço e apático, irascível e histérico.
Com a morte de seu pai-sogro, o infante foi alçado à condição de soberano, sob tutela de temíveis sacerdotes que o manietaram, sem que percebessem, no comando do Império.
Naquela época distante, quando a humanidade dividia-se em dois grupos (um mais numeroso, elementar e primitivo – os autóctones; outro bem menor, mas de mente desenvolvida e circunstancialmente senhores da liderança), a classe sacerdotal exercia o controle do poder, através dos soberanos, a quem subrepticiamente induzia com os mecanismos da religião.
Seu antecessor, pai e sogro, fora espírito forte e obstinado e, com certa habilidade, conseguira impor-se à casta templária, implantando uma nova idéia religiosa através da filosofia monoteísta.
Alicerçada nos dogmas plurideístas, a hegemonia da classe sacerdotal foi abalada com a nova filosofia implantada no Império e isso, obviamente, desgostou seus componentes, astutos e perigosos, oportunistas e despóticos, amontinhando-os. Foi nessa convulsão que o “pequeno capelino” assumiu o poder.
Anjos decaídos pelas transgressões às leis divinas, os sacerdotes aglutinaram suas forças para o restabelecimento das condições anteriores que lhes asseguravam a satisfação de propósitos e idiossincrasias naturais ao estado egocêntrico de suas almas.
O débil e novel soberano, apesar de sua origem identificada a daquelas almas proscritas, sentia no inconsciente a intuição de que, para retornar ao paraíso perdido, necessário se fazia mudar o comportamento, reciclar suas posições filosóficas e traçar novos rumos comportamentais, objetivando a paz do espírito que perdera com o exílio.
Numerosos e potentes, estendendo seus tentáculos entre os autóctones ignorantes, que os temiam e a quem estavam subjugados pelas superstições, os sacerdotes facilmente assumiram o comando do Reino.
Conhecendo as fraquezas humanas, iniciaram um processo de estímulo à vaidade e ao orgulho, cujo estado levariam a vítima a um ciclo fechado em torno de si mesmo.
Assim, transformaram aquele príncipe no mais rico de todos os reis das dinastias conhecidas e consequentemente no mais vaidoso, orgulhoso, prepotente e despótico, cumprindo um plano ardilmente preparado pelos condutores templários.
Aquela pobre alma mergulhara novamente nos lençóis negros do comprometimento espiritual, tal a tirania que exerceu seu governo, tal a vaidade que lhe emprestou a riqueza, tal o orgulho pelo poder que exercia.
Mergulhado nesse poço de mazelas espirituais, sentiu-se onipotente e desejou romper o controle sacerdotal, provocando conseqüentes descontentamentos que resultaram na sua morte por envenenamento, aos dezoitos anos.
Era uma bela manhã de janeiro e o sol brilhava no horizonte. Em torno de um leito simples e muito alvo, três serenas criaturas pareciam aguardar que o príncipe despertasse.
Estavam à distância apreciável da atmosfera terrena e via-se o mundo azul, salpicado de nuvens brancas. De repente abriram-se aqueles olhos amendoados. Sondou aquelas presenças e, mais cansado do que surpreso, perguntou quem eram e onde ele estava.
Aqueles seres acercaram-se do leito e um deles falou: - ION! Nós te damos boas vindas. Jesus te abençoa.
O pequeno Capelino, ainda conturbado pelo desencarne recente, sentiu-se flutuar nas ondas daquele sonho, sozinho e isolado num mundo estranho. Fecho os olhos e duas lágrimas rolaram pela face ainda macerada. Então, a voz serena e amiga continuou: - ION! Lamentavelmente não conseguiste vencer as provas que a vida te pediu. Foste fraco e inconseqüente. Deixaste que os impulsos do egoísmo te vencessem e mergulhaste irremediavelmente nos torvelinhos de comprometimentos mundanos. Mas Jesus, amigo incondicional de nossas almas, te ama e te abençoa com nova oportunidade. Enfrentarás novamente o orgulho e a vaidade, o poder e a prepotência. Lutarás contra a impetuosidade e serás testado no amor aos semelhantes.
Vários pontos luminosos circundaram o pequeno ION. Sentindo o enlevo de fluidos balsâmicos, adormeceu tranquilamente e seu espíritos, saudoso do paraíso perdido, entraria em estágio de preparação para nova experiência na carne.
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