O MENDIGO DE EMAÚS
(Do Livro Contos do Entardecer – Cap. III – de Jansen Leiros – 1983)
O povo hebreu era ativo. Por isso suas cidades eram movimentadas e o comércio se exercia com muita intensidade. A manhã era de sol e muito cedo a gente já se agitava no mercado, quase em frente à Sinagoga. Como aproximava-se a páscoa, o movimento era ainda maior, com visitantes da zona rural chegando em grupos, quase sempre bulhentos.
À frente do mercado, via-se um homem de aproximadamente vinte e dois anos, tez morena, barba desalinhada e grisalha, rosto magro, olhos muito negros como o ébanos e muito duros. Seu aspecto demonstrava absoluta pobreza. Suas roupas eram velhas e rotas. Sua fisionomia revelava um profundo estado de insatisfação. Era um mutilado.
Nascera sem o braço direito e, na articulação do ombro, saía-lhe uma mão hirsuta, quase em forma de concha, como se houvesse sido colada ao corpo.
Talvez esse aleijão fosse o maior e principal motivo da dureza de seu aspecto.
Abel, seu nome, era um dos três filhos de Bartolomeu. Sua infância havia sido a mais dolorosa que o mundo lhe poderia reservar: os irmãos o discriminavam; o pai considerava-o um inútil para o trabalho; a mãe dizia-o um peso morto – pois também nascera débil, anêmico e sujeito a alucinações.
Quando na primeira infância, tinha pesadelos horríveis, nos quais se sentia perseguido por centenas de seres vingativos. Essas perseguições se seguiam quase que diariamente. Seres hediondos lhe cobravam vidas ceifadas a golpes de espada – daquela espada mortífera e desumana de outrora. E Abel se debatia de modo convulso, até que alguém lhe acordasse do pesadelo. Constantes tais delírios, torturavam duramente o pobre Abel.
Certo dia, quando desceu ao mercado com o pai, surpreendeu-o negociando um emprego com saltimbancos, que desejavam explorar sua deformação como atrativo de seus espetáculos. Isso revoltou tanto o pobre rapaz, que o resultado foi sua fuga de casa, acompanhando mercadores que se dirigiam às cidades vizinhas.
Nessa nova conjuntura, Abel viu-se forçado a lutar pela própria vida e, diante das dificuldades encontradas, terminou por aderir à mendicância.
A revolta lhe crescia dia e noite. Ele não aceitava a condição que a vida lhe impunha. Intimamente tornou-se duro e cruel, repugnando, até, os óbulos que recebia.
Quem o visse perambulando pelas calçadas do mercado, notava-lhe sempre um olhar sisudo e triste, irritado e agressivo. Abel não conhecera a alegria. Seu coração jamais sentira as vibrações da felicidade. Sua vida era assim: um serpentear de sofrimentos.
Certa noite, faminto, Abel assaltou uma pobre mulher a fim de obter comida. Foi preso e encarcerado as prisões fétidas e imundas da cidade.
Esse fato lhe foi profundamente doloroso. Achou-se um lixo humano e sua alma capitulou em lágrimas desvanecidas. Aquela humilhação calou no mais íntimo de si. E curtiu sua tristeza naquele cubículo imundo, convivendo com ratazanas e muitos insetos, deitado na pedra fria do catre.
De tanto desgosto Abel foi definhando e terminou acometido de tuberculose pulmonar. Voltaram-lhe as alucinações. Recordava um mundo distante, do qual seria um cidadão respeitável. Via-se elegantemente vestido, rodeado de convivas alegres e joviais e, no interior de imenso galpão, manipulava pequenas formas vítreas, contendo elementos químicos coloridos. Aquele sonho era nítido como o dia. Ele estava ali e sua participação era importante. Depois de remanejar os instrumentos, que na verdade pareciam instrumentais de imenso laboratório, ele concentrava sua mente em grande tela e projetava a destruição de um edifício cuja arquitetura era indescritível. O efeito da projeção mental era de tal ordem que o edifício ruía em poucos minutos. Houve uma enorme explosão, semelhante às explosões atômicas de nossos dias. O tumulto, grande e generalizado. Aquele mundo pareceu estremecer. Abel atônito, sentiu a extensão da catástrofe que causara por abuso do saber e do poder. Aquele paraíso ficara longe e Abel sentia que o perdera, mergulhado num abismo infindável, no qual descia em redemoinho alucinante. Despertou aos gritos. Somente as ratazanas o escutaram.
Ao sair da prisão, Abel era um espantalho humano.
Numa noite de frio, a hemoptise visitou Abel em plena sargeta e arrancou-lhe o restinho de vida que lhe comandava o corpo débil. As nuvens negras que o rodeavam envolveram-lhe o espírito recém-desencarnado e levaram-no pelos umbrais, com sanha vingativa e cruel.
Centenas de anos transcorreram, de cativeiro e vampirismo. Abel reduziu-se à forma mais elementar do universo astralino.
Certo dia, quando a misericórdia de Deus atendeu os rogos de almas amigas, três luzes braço-azuladas, em sacrificial descenso, acercaram-se daquela massa deforme e, após prece angelical, uma das luzes tomou a forma humana e falou com profunda doçura: - ION! Filho amado, como sofreste! Quantas dores te chagaram a alma! Contigo, sofremos também, mas precisavas carpir tuas faltas pelo muito que devias, tanto quanto ainda deves ao passado de imprecações, de desacertos e de crimes contra às leis da vida. Mas, o Divino Rabi te abençoa. Vem conosco. Serás preparado para nova encarnação, na qual poderás obter tua redenção. Terás um corpo através do qual filtrarás os resíduos pesados de tua alma comprometida; terás um corpo chagado. Viverás novamente sozinho e sofrerás o repúdio de muitos. Porém, o sofrimento te levará à luz do Grande Sol.
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