sexta-feira, 19 de agosto de 2011

JOSÉ JOAQUIM, UM CRISTÃO ANÔNIMO

(Do Livro Contos do Entardecer, Capítulo X, de Jansen Leiros – 1983)

Nas últimas décadas do século passado, em afastada cidade do sertão cearense, nascera José Joaquim. Sua mãe era modesta empregada doméstica da casa paroquial. Seu pai, o vigário João Marrecas, tio do grande taumaturgo do Juazeiro.
José Joaquim fora reconhecido pelo padre e logo que terminou o curso primário, foi mandado para a capital a fim de cursar o seminário. Com ele seguiu seu primo, algo mais moço, que se tornaria o foco das atenções do mundo religioso de nosso país, no início deste século, até a década de trinta.
Ao par de algum tempo, morrera seu pai e, como sua mãe não possuía recursos financeiros para custear seus estudos, José Joaquim retorna ao Cariri, sem haver sido ordenado padre secular, porém, tonsurado.
Era jovem ainda. Tornou-se professor de língua latina da pequena escola que lhe deixara o pai e assumiu as responsabilidades da família: sua mãe e uma tia octogenária.
José Joaquim era, na aparência, calmo e comedido. Estudioso e muito inteligente, dedicou-se à pesquisa histórica. Versátil, conhecia além do latim, o grego, o francês e o alemão, o que lhe proporcionava ler seus compêndios no original. Era grande sua inclinação para a filosofia. Leu Platão e Aristóteles, mas preferiu seguir as linhas filosóficas do cristianismo. Há entre os manuscritos que deixou, além das célebres cartas em defesa do padre do Juazeiro, alguns comentários sobre o pensamento filosófico de São Tomás de Aquino. Era profundamente sensível às coisas do espírito. Seu mundo mental era povoado de sonhos platônicos. Seu coração era terno e amoroso, atendendo aos necessitados da alma com um carinho imenso.
Amante da natureza, sua morada bucólica era um autêntico zoo-botânico. Criava quase uma centena de animais de vários tipos, controlava sua reprodução, planejava acasalamentos híbridos criando novas espécies, as quais costumava presentear a outros aficcionados. Chegou a elaborar um catálogo das variedades vegetais da região e cultivava plantas medicinais com as quais preparava medicamentos caseiros, para ministrar aos doentes pobres que atendia.
José Joaquim, a par de suas atividades docentes, dos trabalhos ligados ao seu mundo zoo-botânico, dos estudos de filosofia e religião que o empolgavam, costumava visitar famílias pobres, sondar-lhes as possibilidades, ajudando-as no que lhe era possível. Aqui, conduzia alguém para empregar-se nas fazendas de pecuaristas amigos; ali, estimulava atividades agrícolas, orientando e fornecendo sementes. Acolá, distribuía roupas usadas, conseguidas com famílias abastadas ou remédios para os casos mais graves, quando suas mezinhas não fossem aconselháveis.
José Joaquim era assim, caritativo, bom, amoroso, prestativo, humano, dócil e humilde. Porém, diante da injustiça, levantava-se o advogado tenaz e diligente, palavra fácil e incisiva, na defesa do justo. Era um apóstolo do Bem.
Sua vida, entretanto, de simples e despretenciosa não o projetou na medida se seus méritos e passou por ela quase no anonimato, não fora a defesa que assumiu e fez valer em favor de seu primo, o iluminado taumaturgo do Ceará.
José Joaquim, fora demasiado veemente nas cartas que dirigiu ao bispo, em defesa daquele que se tornaria um ídolo nacional, do que resultou, também, ser marginalizado pela igreja. Cristão convicto, José Joaquim não se incomodou com as acusações que recebera através da diocese, tão pouco declinou em qualquer dos pontos da defesa dos direitos de seu primo, a quem estava ligado por laços de profunda e sólida afinidade.
Os fatos atribuídos ao taumaturgo impressionaram de alguma forma ao professor José Joaquim, induzindo-o a fazer pesquisa e profundos estudos no campo da meta-psíquica e seus efeitos paranormais.
Conhecia toda a região, casa por casa e, com a gente do campo confundia-se pela identidade de costumes e pela capacidade de assimilação de que era possuidor. Com o vaqueiro, falava sua linguagem; com os agricultores, sobre a cultura que desenvolviam, orientando-os; com mecânicos, sobre os processos técnicos utilizados; com religiosos, envolvia-os em sentimentos de fé. Com crianças, tornava-se uma delas, brincava de rodas e cantava canções; contava-lhes histórias, nas quais os elucidava para a vida. Com os velhos, lhes inspirava coragem e confiança, amor pelos semelhantes e pela vida. Junto do pobre, era um permanente defensor de seus direitos; com os ricos, funcionava como mediador, moderando-lhes os arroubos egocêntricos, chamando-os à razão.
Contam que certo dia, José Joaquim tomou conhecimento de que vinham-lhe roubado algumas galinhas. Refletiu um pouco e foi até à despensa da casa. Encheu uma cesta de vime com uma pequena feira, fez um pacote de roupas usadas e escreveu um bilhete: - “Meu irmão noturno. Talvez você esteja precisando, também, de alguns mantimentos. Aí vão diversos. Fiz, ainda, um pacote de roupas usadas, mas que lhe servirão, estou certo, nas noites de frio. Se necessitar de outras aves, pode vir buscá-las. Eu as darei. Obrigado”.
Se o amigo do alheio leu o bilhete, não se sabe, mas levou a cesta e o pacote de roupas, e não voltou a roubar-lhes as galinhas.
De outra feita, quando descia pelo pátio da feira defrontou-se com um vendedor que transportava uns cinqüenta galos de campina, numa gaiola de palitos de coqueiro. Parou diante dele e perguntou o preço dos passarinhos, já com o porta-níqueis na mão. Informado do valor, entregou-lhe dois “patacões” e, ali mesmo, sob os olhares de espanto de quantos presenciavam a cena, soltou os passarinhos. Voltando-se para os circunstantes, falou com um sorriso: - Deus os criou livres. Quem somos nós para prendê-los? E continuou sua caminhada pela vereda da Sé.
Sua vida fora cheia de episódios assim, curiosos, mas que passaram desapercebidos pela sua absoluta simplicidade.
No princípio do século, José Joaquim começou ater visões que a ninguém revelava. Certa feita, quando se deitara, ouviu baterem à porta e foi atender. Eram doze horas da noite. Um homem de estatura mediana, magro, fisionomia lusitana, cabelos brancos, faces coradas e bastante simpático, lhe cumprimentou e, convidado, sentou-se à mesa, repleta de papéis e livros. Com ar sereno, voz pausada, mas firme, falou: - “Temos, entre nós, laços de profunda afetividade, solidificados pelo cadinho do tempo. Estivemos juntos em muitas ocasiões, desde o passado remoto. Juntos, precisamos empreender um trabalho, planejado quando ainda não havias descido ao corpo. Evidentemente, não iremos realizá-lo agora, todavia, precisamos ajustar sintonias, objetivando propiciá-lo no momento oportuno, enfocando os mecanismos da lei de causa e efeito, em execução através dos processos reencarnatórios. Hoje, serão ajustes nos circuitos endócrinos para obtenção de melhor sintonia através dos canais da epífise. Amanhã, a execução da tarefa pelos santificantes processos da inspiração medianímica, no entardecer do ciclo. Tua vida te creditou valores estimáveis. Ressarciste boa parte do teu carma, pelo teu comportamento equilibrado e sóbrio, amoroso e paciente, sensato e ilibado. Em razão de tudo isso, vimos te visitar, por oportuno, e te dizer que chegou o momento de iniciarmos o preparativos de uma nova etapa, quando serão executados nossos projetos. Após o desencarne terá um reconfortante e merecido descanso em colônia de repouso.
No entardecer do século, será o momento de executar a santificante tarefa, dentro dos planos aqui traçados. Todavia, para tanto, necessitamos de tua concordância, pois a lei da vida respeita o livre arbítrio do homem.
José Joaquim não podia conter as emoções daquela hora. Suas lágrimas umedeceram seus olhos e na firmeza de seu olhar, sentia-se a determinação do dever a cumprir. Naquele instante reconhecera o amigo de milênios a abraçou-o comovido.
José Joaquim despertou do transe. Na retina de sua mente, estava clara, muito clara a imagem de seu amigo espiritual.
Depois daquela visão, José Joaquim tornou-se taciturno, passava a maior parte dos dias meditando e orando. A lembrança daquele iluminado amigo o tornava nostálgico, mas feliz pela certeza de que estivera no caminho certo, praticando o “amai-vos uns aos outros”.
Algum tempo depois, no seu zoo-botânico, rodeado de uma natureza que ele próprio ajudou a criar, morrera José Joaquim, com um sorriso nos lábios. Ele já sonhava com o paraíso capelino, perdido na noite do tempo. Seu paraíso, agora, era o Universo de Deus.

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