MOHAMED. UM FILÓSOFO MULÇUMANO
(Do Livro Contos do Entardecer – Capítulo VIII – de Jansen Leiros – 1983)
As torres das mesquitas faziam contraste com o céu azul e límpido de Córdoba. O domínio muçulmano na península se consolidara e gerações árabe-ibéricas desenvolviam-se naquelas terras de sol quente. A bravura daquela gente marcou época.
Era o ano de 1126 de nossa era. Na mansão do cádi havia um movimento inusitado. Guardas e serviçais iam e vinham agitados nos preparativos de grande festa. Nascera, sob o signo de Peixes, o primogênito Mohammed-ibn-Walid.
Aquele nascimento fora esperado com muita ansiedade, pois o cádi ainda não tinha descendência, o que lhe criaria, no futuro, sérios embaraços à sucessão.
Mohammed era uma criança saudável, inteligente, masculinamente bela. Desde muito cedo demonstrou seus pendores para as artes, principalmente a música, tendo incursionado pelas artes plásticas
Na escola, demonstrou tendências para a matemática e para as ciências, colocando-se entre os mais aplicados. Inquieto e altivo, impunha-se entre os companheiros pela liderança nata de que era possuidor. Sua rapidez de raciocínio e a segurança dos conceitos esposados, sobre quaisquer assuntos, fizeram-no um jovem respeitado e admirado por todos, na velha Córdoba.
Na maioridade, inclinou-se pelos estudos filosóficos, principalmente as teorias de Aristóteles, de cujo sistema tornou-se notável comentarista, havendo publicado inúmeras obras nesse sentido. Amadurecendo suas idéias, chegou a ser influenciado pelo sistema neoplatônico.
Mohammed defendia a harmonia entre a razão e os conceitos religiosos, criando uma teoria que se denominou: da dupla verdade. Evidentemente, esse segmento de seu pensamento filosófico destoava daquilo que ele sentia no interior de seu espírito, mas, polêmico por impulso e de alguma forma orgulhoso de sua erudição, enveredou por caminhos difíceis por amor ao casuísmo, em dissonância com suas tendências interiores, o que, aliás, não chegou a causar-lhe maiores conflitos, tal a versatilidade de que era portador. A teoria da dupla verdade baseava-se na filosofia como forma racional da verdade, quando utilizadas pelas pessoas cultas; e a teoria religiosa como segmento metafórico da verdade, para os que não tivessem erudição. Em razão desses conceitos, Mohhammed suscitou sérias críticas dos filósofos do cristianismo, tendo como maior de seus opositores São Tomás de Aquino.
Sua vida transcorreu em atmosfera essencialmente intelectual. Em sua existência de setenta e dois anos, Mohammed produziu uma vintena de obras versando sobre filosofia, direito e matemática. Suas últimas obras, entretanto, tratavam de medicina, ciência que abraçou com muita dedicação após os quarenta anos de idade. Seus comentários filosóficos, todavia, o tornaram muito conhecido, pois serviram de embasamento aos estudos aristotélicos, da idade média ao renascimento.
O que o levou a dedicar-se aos estudos da medicina foi seu espírito de pesquisa, quase indomável. Amigo que era do Califa Mara-Yussuf, do Marrocos e havendo morrido seu médico particular, Mohammed, na ausência de um substituto que inspirasse a confiança do Califa, entregou-se de corpo e alma às pesquisas naquele campo, tornando-se, em pouco tempo, médico oficial do Califado.
Algum tempo depois foi nomeado cádi de Sevilha e em 1169, com a morte de seu pai, tornou-se cádi de Córdoba por direito hereditário, dinastia muçulmana que durou até a retomada da Península por Fernando de Aragão, o Rei-Católico.
Certa noite, quando a lua deitava seus raios prateados sobre a terra, Mohammed despertou em ambiente astralino e viu-se circundado por três ilustres personagens, vestidos à moda nazarena. Aquele que lhe pareceu mais categorizado, com profunda ternura, o saudou e disse: - ION amado! Quanta alegria. Enfim podes receber os galardões da vitória. Soubeste superar os óbices do caminho. Tiveste o poder e não abusaste dele; manipulaste a sabedoria, mas não se envaideceste a ponto de te prejudicar ou comprometer sua ascensão; enfrentaste dissabores políticos e não te revoltaste. Continua ION. Continua tua tarefa com a mesma disposição e confiança em Deus. Descansa esse final de experiência para, no futuro, iniciares novas etapas, quando Jesus te provará no amor ao próximo, na humildade, na paciência e na resignação, posto que restas ressarcir alguns compromissos do passado, ligados à tua vida afetiva. Deus te abençoe e a todos nós. Desapareceu.
Mohammed despertou daquele sonho com a maravilhosa sensação de paz; era como se regressasse do céu. Veio-lhe, daí, a lembrança nostálgica de um maravilhoso mundo distante e indefinido, perdido no tempo e no espaço, em dimensões alheias à sua percepção.
A neve tingiu de mansinho os cabelos de Mohammed. Ele envelhecera rodeado de pessoas amadas que o queriam com carinho e ternura. Sua presença era requisitada nas mais importantes reuniões da época e sua palavra, cheia de sabedoria e sensatez, era escutada com respeito.
Aos setenta e dois anos, desencarnou Mohammed com um sorriso nos lábios e cercado de luzes cintilantes.
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