“Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos.” (Don Miguel de Unamuno)
No reino muito próximo e muito próspero da Macaíba, um menino mal saído dos cueiros gostava de acordar antes dos galos, para saudar a fundação do dia e ouvir os seus acordes. Atravessava com muito cuidado os vãos da pequena casa da rua Benjamin Constant, vencendo com dificuldade a ainda reinante escuridão e, pela porta dos fundos, tomava o rumo do curral onde o pai mantinha sempre meia dúzia de vacas para o leite doméstico.
Seu pouso era o tanque de beber dos animais. Lá, punha-se de pé numa das paredes do bebedouro e se esticava, alongando o olhar na direção da longínqua ponte de igapó, nas quase brevidades do pressentido rio Jundiái.
Ali, aguardava que o dia se mostrasse.
Fascinava-o o lento e mágico alvorecer. A tímida mas determinada luz precursora de um sol ainda em trânsito do outro lado do mundo, que punha claridade no negror, azulejando-o. Depois, apresentava-se numa convulsão cinza-claro se esbranquiçando, já mesclado com estertores da agonia escarlate, sugerindo um parto sanguinolento e, afinal a criança alva vindo à luz, gloriosa qual o Cristo ressuscitado.
Era quando olhava ao derredor, uma rotina que o tranqüilizava e aumentava o seu domínio da beleza. Conferia as suas posses visuais: o pomar verde pontilhado de promessas multicoloridas, cheio de vida animal que dele se nutria. Até escolhera a sua árvore: um pé de pinha. Mas sabia que a rainha do terreiro era uma jaboticabeira, porque era árvore ritual da antiga vila de Coité, que definia uma época em que todos a celebravam, como doce e sumarenta excentricidade, nascida tão agarradinha ao tronco, como a criança ao ventre materno.
E se fascinava com os arautos da manhã. Primeiro, o galo despertador; depois, os resmungos dos perús e das galinhas alvoroçadas. O grito desagradável do pavão e o tô fraco falso e acanalhado dos guinés. Até mesmo o zurrar do burro sendo acangalhado para o transporte de água.
Mas o seu deleite eram os pássaros, aquelas pequeninas e maravilhosas criações de Deus para alegrar as criaturas. Especialmente os sabiás, bem-te-vís e canários e também os azulões. Até mesmo o crocitar dos gaviões o encantava. Era tudo testemunho de vida.
Observava os volteios elegantes e graciosos dos beija-flores e das libélulas, a sem cerimônia das borboletas, pousando onde queriam. E, antes que o dia estivesse definitivamente instalado, dizia aos seus amigos invisíveis que não precisava de nenhuma prova da existência de Deus. Estava satisfeito e consciente da sua onipresença, a sua obra o autenticava.
Esses amigos somente ele enxergava. Gente desconhecida, uns solenes, outros simples. Sentia-se à vontade com o avô adotivo paterno, Neco Freire, que lhe transmitia recados para o filho, seu pai, a respeito de assuntos os mais variados, desde o pedido de cautela com certa iniciativa até orientações para a vida de relações.
Felizmente, nascera numa família espírita, onde se acreditava na transmigração das almas a partir da reencarnação. E da possibilidade de comunicação com os que já morreram. Por conta desses dons, tornara-se mal visto pelos companheiros, como fosse uma espécie esquisita.
Imagine-se numa época de extremos saberes, em que pontificava, de um lado, os dogmas religiosos, e do outro uma intolerante ciência que também punha os seus dogmas como verdades absolutas. Onde se situaria uma criança cheia de imaginosos amigos invisíveis, em diálogos diários com o avô falecido?
Reprimiu as revelações, mantendo-as para si mesmo e para um grupo restrito de familiares.
Mas a “fatalidade” o perseguia. Foi estudar no Grupo Escolar Auta de Souza, onde havia nascido a poeta do “Horto” e lá, todos os dias, a notável macaibense postava-se ao seu lado, estimulando-o e o auxiliando nas lições. O menino sabia quando ela chegava porque sentia um forte cheiro de jasmin.
(Certa vez andava no velocípede no chão de mosaicos da sua casa, quando uma figura feminina, muito magra e pequenina, cercada por um halo muito luminoso, atravessou a sala de um a outro vértice, sorrindo para a criança, como um anjo o faria. A primeira reação foi a de gritar para que alguém o socorresse. Depois, foi sendo envolvido por uma paz, um conforto que o relaxou. Teria uns cinco a seis anos. Já era a sua “madrinha” assegurando-lhe proteção)
E ela o acompanhou a vida inteira. Se não aproveitou as orientações recebidas, foi por pura rebeldia ou enfado, um cansaço existencial que acomete os que derivam para outros planos sensoriais, cercando-se de regras e princípios inflexíveis, afastando-os do humano e achegando-os para o divino. Um fardo muito pesado, sobretudo para a criança.
Até hoje não soube porque a iluminada conterrânea o cerca com tanto carinho e tanto zelo. Talvez, cogita, afinidade poética, raízes telúricas, a sua alma peregrina e penitente...
(Pouca gente leu Unamuno, que é recorrente para mim, senão concordaria com o filósofo espanhol quando afirmou que “Aquilo a que chamamos espírito parece-me muito mais material do que aquilo a que chamamos matéria; sinto a minha alma mais manifesta e mais sensível do que o meu corpo.”)
Foi estudar em Natal, no Ginásio Sete de Setembro, depois, no Colégio Marista e finalmente, no Atheneu.
Retornou a Macaiba após casar-se, aos dezoito anos. Em decorrência da responsabilidade assumida, foi trabalhar na Cooperativa Banco Auxiliar do Comércio , de Jessé Freire. Alguns anos depois, foi nomeado para o Instituto do Açúcar e do Álcool, onde trabalhou durante... anos.
Conheci-o na velha Faculdade de Direito da Ribeira, em 1963. Estava no primeiro ano de direito e ele já no quarto ano. Candidato á Presidência do Diretório Acadêmico Amaro Cavalcanti, pelo bloco da esquerda, os estrategistas da sua campanha entendiam que o candidato a Vice-Presidente da sua chapa deveria ser alguém do primeiro ano, a turma mais numerosa, e que polarizasse votos de outros segmentos.
Então eu era ligado aos intelectuais, aos desportistas, pois era um bom atleta de voleibol e de basquete, e também ligado à esquerda. Além disso, segundo os mesmos analistas, depois que aprovaram o meu nome, eu era bem apessoado e “moderno”, dado às festas e eventos sociais, agradando ao eleitorado feminino.
Como já referi nesta mesma série, quando retratei o amigo Manoel Onofre Júnior, da minha chapa só eu fui eleito. E foi a minha desdita, pois, por circunstâncias alheias à minha vontade, assumi a Presidência do Diretório em razão do seu titular haver assumido a Presidência do Diretório Central Universitário. Corria o ano de 1964 e, pelo simples fato de me destacar como liderança estudantil, e no ambiente universitário, fui devidamente estigmatizado, como tantos outros companheiros ditos “de esquerda”.
O meu candidato à presidência, por determinação pessoal conseguiu transferir-se da Delegacia de Natal do IAA para o Rio de Janeiro.
Desatinou-se, e num dia tempestuoso, desaguou no Rio de Janeiro e do ano inteiro. Um peixe fora d´água que se tornou anfíbio. Aprendeu a falar carioca sem sotaque macaibeiro e passou a ser. Andava por Copacabana, Leblon, Ipanema e algures como Marco Polo no Cipão. Depois de gastar tanto as solas dos andadores sapatos, verificou que apesar de diferentes da rua do Pernambuquinho, das Cinco Bocas e do Porto das Macaíbas, os afluentes do rio eram iguais, porque, tal como bem o disse o sábio beiradeiro Manoel Onofre a respeito de sua serra, no “Caçador de Jandaíras”, era Macaíba que levava consigo aonde quer que fosse.
Tentou ser um carioca postiço. Lutou para afastar as suas origens, não por vergonha ou arrependimento, mas porque queria criar raízes, aprumar-se, ter um rumo definido para sentar praça neste mundão de Deus. Afinal, ouvira seu pai dizer, “em Roma como os romanos”. Mimetizar-se, ser igual ao camaleão, o louva-Deus, o bicho-pau, era de boa guia para escapar aos predadores de paus de arara.
Com o tempo, o Rio ficou pequeno, quase um córregozinho para a visão pós-horizontina dele. Afivelou as malas e danou-se pelos ocos do mundo. Só não foi onde não quis, porque não quis. Mas tem sustança para falar de Seca e Meca, do que viu e que quase não acreditou, só dando crédito porque os seus olhos, que a terra há de comer, foram testemunhas de vista, a mais acreditada das provas.
(`Qui pra nós, não é pra mode gabá-lo, mas até conheceu umas figurinhas carimbadas da História do Brasil: Sua Alteza, o Príncipe Dom Eudes de Orleans e Bragança e sua digníssima consorte, a princesa Mercedes, o compositor Herivelto Martins, o cantor e compositor Luiz Vieira, entre outros).
De vez em vez batia uma mistura de calundu com banzo, uma raiva dos costumes estranhos e uma saudade da vida de quintal e de terreiro que tivera, tanta, que o deixava em maus lençóis de edredom em pleno calor.
Abandonou o emprego, onde andava sem sair do lugar, e decidiu fazer um estágio para voltar às origens. Deu por si em Itumbiara, na distante Goiás, onde morava a sua irmã Natércia. Precisava readaptar-se e nada melhor que um mergulho em profundidade nos sertões recônditos do Brasil
Fui revê-lo já iniciado os anos oitenta, graduado pela Faculdade Nacional de Direito.
Eu havia instalado uma editora e ele buscava a publicação do livro “Apólogos do Nascer do Sol”. Então ele prestava assessoria a Valério Mesquita, paradigma-macaibense, na Fundação José Augusto. Ajustamos os detalhes da edição e, desde então, tornamo-nos amigos e, a intimidade me trouxe uma visão mais acurada da alma Janseniana.
Mantinhamos afinidades várias: no gosto pela boa música – as suítes para cello de Bach, interpretadas por Yo-Yo Ma – os amarelos e azuis delirantes, os corvos, os trigais, os girassóis e, as noites estreladas de Van Gogh, o paisagismo sépia de Vermeer, as figuras andróginas e os santificados de Caravaggio; as leituras inquietantes, que nos roubavam o sono e nos punham em estado de dúvida – Saramago, Thomas Hardy, Kazantzakis, Kafka – e o providencial Kardec, o recorrente Kardec.
Também o amor pela natureza e uma especial atração pelos pássaros e pelas flores. O meu amigo ama os canários e as orquídeas; eu, os bemtevis, os golinhas; os jasmins, os bugaris e as açucenas. O jogo de cartas (buraco) sempre em dupla comigo, tendo como adversárias a minha mulher, Jailza e a amiga querida Lélia Silveira; e o cinema.
Assim como eu, também ama os casarões, os velhos abrigos grávidos de história, com uma alma imortal. Por isso habitou por longo tempo o Solar da Madalena, onde se deleitava como se fora donatário de um império. Ali criou cavalos e bois, marrecos, patos imperiais, cisnes, cacatuas, aleitou orquídeas, estimulou jasmineiros, cultivou mais amigos do mundo espiritual, deu à luz livros e composições. Foi um grand seigneur, como lhe é dado ser.
Trato do amigo Jansen Leiros Ferreira, um multifário – escritor, musicista, pintor bissexto, compositor, geneticista, evangelizador com surpreendente fluência verbal e cidadão do mundo, com périplos na Oropa, França e Bahia. Habitante daqui e d´algures, onde o conduza a sua vontade liberta e independente de passarinho nunca exilado nem vítima dos alçapões da vida.
Jansen crê num único repositório da verdade absoluta: a doutrina espírita kardecista, a partir do Evangelho Segundo o Espiritismo. Quanto ao resto tudo se concentra num relativismo que a dialética ajuda a esclarecer. Sectário? Não, crente. Se não fosse essa fé que guarda no destino do homem, na sua verdadeira natureza e condição humana, talvez já tivesse migrado para o nihilismo, tantos e tamanhos foram os desencontros que testemunhou e vivenciou, ele próprio.
Não fosse a certeza que acalenta da existência de uma planilha cármica, proposta pelo próprio ser, onerado pelas obrigações pretéritas não realizadas em trânsito para outra existência, jamais entenderia porque tanto sofrimento e tantas frustrações amealhadas pelos que se conduzem com moderação, equilíbrio e um quê de bondade herdada do Criador, mesmo mesclada pelas nódoas da constituição humana.
Nem porque aqueles que se excetuam do contexto do “povo de Deus” obtém tanto sucesso material, tantos teres e haveres e são donatários do poder , da glória...e da impunidade.
Pacificou-se desde que se descobriu habitante de dois planos sensoriais: um, dito real, que emerge dos sentidos humanos comuns; outro, que se distingue do primeiro porque não se revela pelo olfato, paladar, visão, audição ou tato, embora também possa assim ser expresso, mas pela possibilidade de enxergar, escutar, comunicar-se e sentir com a alma. E até concede como recurso argumentativo – com a mente, para que se aquietem os investigadores (quase dizia os “inquisidores”) científicos.
Quantas e quantas infinitas vezes tresvariou e foi harmonizado pela fé, por amigos invisíveis, que nunca o deixaram em solidão?
E também porque, nessas ocasiões, procura compensar-se, dando testemunho da sua crença e reforço à sua missão evangélica, escrevendo os seus comoventes romances espíritas, de sua própria lavra, embora intuídos pelos habitantes do mundo invisível.
Talvez seja o autor espírita norte-rio-grandense com o maior número de títulos publicados sobre a temática espírita, sem prejuízo da qualidade das escrituras. São obras de ficção com conteúdo moral, destinadas a servirem de referência ao processo de desconstrução e reconstrução do ser humano, no milênio de sua redenção.
Aliás, transijo. Não sei se posso classificá-las como ficção, já que a arte imita a vida e também porque elas ou são sussurradas ao ouvido do meu amigo ou lhes são sugeridas.
Fragmentos de Reflexões, Contos de Entardecer, Apólogos do Nascer do Sol, Prelúdios de um Novo Dia, Adágio de Esperanças (o seu preferido), Sonata do Alvorecer de Aquarius, Garimpando a Luz e o recém-lançado Aleluia do Homem Novo. No prelo, a única obra memorial, as encarnações da irmã Daphne, falecida tragicamente: Daphne – Compromissos e Resgates.
Esse último livro foi escrito a partir do pedido da própria irmã, através de uma médium que participava de um congresso espírita. O autor faz o seguinte relato: “...fui assistir à palestra da médium Marilusa Vasconcelos, portadora de mediunidade pictórica que, em brevíssimo tempo executava quadros representativos dos mais célebres pintores do mundo...De repente fui atraído pelo questionamento de alguém que consultava a platéia para saber se havia algum parente de Daphne. Se houvesse, que subisse ao palco pois havia uma mensagem. Subi e quando a médium me identificou disse-me que a mensagem era a seguinte: “Jansen conte a história das minhas existências. Beije meus pais e minha irmã”.
Em seguida, a médium entregou-me uma tela que mostrava um rosto de mulher envolto em chamas – tal como a minha irmã caçula havia desencarnado.”
O meu amigo tem dupla natureza, eis que usina magnetismo. Nele habitam dois seres antípodas: Janjão e Filisteu.
O primeiro teria sido sanfoneiro nas folganças forrozeiras e nas trabalhosas feiras de Macaíba, daí o nome Janjão Sofoneiro (assim mesmo). Teria sido um espírito bonachão, cheio de prosa e repentes, riso emoldurado na boca escancarada. Um boêmio colecionador de noites de dança, sanfoneios e cerveja. Sem eira nem beira, desenraizado por querer, espalhava-se pelas quebradas do agreste de Coité. Já que só tinha ele, era ele mesmo.
Quando desencarnado, Deus aproveitou a sua alegria e o mandou ser cantor e tocador no coro de anjos. Tornou-se, no plano evolutivo, um missionário contemplativo, mais para o Zen budismo que para o esoterismo. Era esse-um que habitava Jansen: uma alma poética, reflexiva, amante da natureza, mal comparando, um sertanejo diria sem querer ofender, que era como um boi capinando, aquela placidez bovina de quem não sabe a força que tem e não está nem aí para tal sabença. Queria mesmo era poetar, encher os olhos de beleza e estar em paz com Deus.
Aquele-outro era diferente.Olho raiado de vermelho, nó na goela, cara mais trancada que baú de pão-duro, era rancoroso, mandão e brabo. Que ninguém se metesse a besta ou o cipó brocha ou o relho assobiava e o lombo era lenhado. Besta-fera do cangaço, fez trato com o tinhoso para fechar o corpo e encorpar a valentia.
Quando se foi desse mundo, ficou entrevado e, depois de muita teima dos seus benfeitores, encastoou-se em Jansen, para aproveitar a valia de Janjão e o azougue do médium.
Vez em quando, pegava Janjão dormindo e o guardião sanfoneiro de guarda arriada e dava trabalho, apresentando-se como se fosse o pobre do encarnado. Vixe Maria! Aí se espalhava e quem não quisesse sobra que saísse de perto.
Isso explica o vai-e-vem dos bons e maus instantes do meu amigo. Aliás, todos temos os nossos Janjões e Filisteus, com outros nomes. Os mais afortunados e letrados, com nomes impronunciáveis tirados da psicologia e da psiquiatria. Os mais precisados, com “encostos” que atendem pelos nomes conhecidos das artes das mandingas.
Jansen é exímio pianista, tendo sido aluno do Maestro Waldemar de Almeida, Dulce Cicco, Nilda Guerra Cunha Lima, Gerardo Parente e José Kaplan. Estudou canto com a Professora Atenilde Cunha e Nino Crime e regência coral com Pedro Santos e Padre Pedro Ferreira. Criou a “Camerata Oswaldo de Souza” e o “Quinteto Oficina”.
Compositor de uma dezena de peças harmonizadas para orquestra de cordas, estas foram apresentadas em concerto realizado pela referida Camerata, na Aliança Francesa, em homenagem à irmã Daphne.
Orador com fluência verbal e voz empostada, é freqüentemente convidado a proferir palestras nos diversos centros espíritas daqui e de outras cidades.
Seu amor pelos animais em geral e em particular pelas aves o fez pesquisador da genética, processando inúmeros e bem sucedidos cruzamentos. Já foi juiz do Kennel Club do Rio de Janeiro, onde morou, criou cavalos e gado de raça, galinhas e canários belgas, tendo sido presidente da Associação dos Canaricultores do Rn.
Sua maior paixão, no entanto, foi a criação experimental de aves de cor branca, resultado de minuciosa busca e pesquisa de cruzamento genético. No Solar da Madalena, onde morou longo tempo, manteve um plantel composto por galinhas Leghorn, perus, patos marrecos, gansos, guinés, uma cacatua e um bando de cisnes, todos imaculadamente brancos. Por que? Quem sabe...talvez impulso estético, a sublimação da pureza para as aves, seres divinos...
Porque Jansen é um esteta disciplinado. O modo como se veste, com aprumo, método e harmonia uniformista, revelam essa preocupação. Sapatos combinando com cinturão e pulseira do relógio; camisa da cor do mostrador do relógio e das meias; geralmente usa paletó, nesse caso, a gravata tem de se harmonizar com a cor do terno. É um dândi.
Sua formação jurídica o levou à advocacia, em Natal iniciou-se no ofício no escritório de Nei Marinho, depois se estabelecendo como profissional liberal autônomo. Foi juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral, Assessor Jurídico do Estado do Rio Grande do Norte e Presidente do Tribunal de Ètica da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ostenta diversas honrarias – títulos, comendas e homenagens – é sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e membro da União Brasileira de Escritores/Rn.
Atualmente, aposentado do serviço público estadual, pratica a advocacia e é Assessor de Relações Institucionais da Federação do Comércio do Rio Grande do Norte, cargo que exerce com maestria, pois, cidadão do mundo e cultivador de relações pessoais, nada mais faz do que ser o que é.
Mas, os seus maiores galardões talvez tenham sido a de filho do honrado Aguinaldo e da dedicada e terna Leonor, sua mãe – que perdeu a beleza do nome, registrando-se apenas Maria, por esquisitice do tabelião. Pai de seis filhos, muito especialmente da doce Maria Leonor, recolhida por Deus para a semeadura do carinho entre os aflitos. E dez netos. Fechando com chave de ouro o ciclo efêmero do seu trânsito planetário, Deus o abençoou no reencontro com Anair, a que tem sido um pouco do seu quase tudo, a compensação dos muitos sofreres e desencontros, companheira, companheira, companheira...
PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado. Escritor e Advogado.
No reino muito próximo e muito próspero da Macaíba, um menino mal saído dos cueiros gostava de acordar antes dos galos, para saudar a fundação do dia e ouvir os seus acordes. Atravessava com muito cuidado os vãos da pequena casa da rua Benjamin Constant, vencendo com dificuldade a ainda reinante escuridão e, pela porta dos fundos, tomava o rumo do curral onde o pai mantinha sempre meia dúzia de vacas para o leite doméstico.
Seu pouso era o tanque de beber dos animais. Lá, punha-se de pé numa das paredes do bebedouro e se esticava, alongando o olhar na direção da longínqua ponte de igapó, nas quase brevidades do pressentido rio Jundiái.
Ali, aguardava que o dia se mostrasse.
Fascinava-o o lento e mágico alvorecer. A tímida mas determinada luz precursora de um sol ainda em trânsito do outro lado do mundo, que punha claridade no negror, azulejando-o. Depois, apresentava-se numa convulsão cinza-claro se esbranquiçando, já mesclado com estertores da agonia escarlate, sugerindo um parto sanguinolento e, afinal a criança alva vindo à luz, gloriosa qual o Cristo ressuscitado.
Era quando olhava ao derredor, uma rotina que o tranqüilizava e aumentava o seu domínio da beleza. Conferia as suas posses visuais: o pomar verde pontilhado de promessas multicoloridas, cheio de vida animal que dele se nutria. Até escolhera a sua árvore: um pé de pinha. Mas sabia que a rainha do terreiro era uma jaboticabeira, porque era árvore ritual da antiga vila de Coité, que definia uma época em que todos a celebravam, como doce e sumarenta excentricidade, nascida tão agarradinha ao tronco, como a criança ao ventre materno.
E se fascinava com os arautos da manhã. Primeiro, o galo despertador; depois, os resmungos dos perús e das galinhas alvoroçadas. O grito desagradável do pavão e o tô fraco falso e acanalhado dos guinés. Até mesmo o zurrar do burro sendo acangalhado para o transporte de água.
Mas o seu deleite eram os pássaros, aquelas pequeninas e maravilhosas criações de Deus para alegrar as criaturas. Especialmente os sabiás, bem-te-vís e canários e também os azulões. Até mesmo o crocitar dos gaviões o encantava. Era tudo testemunho de vida.
Observava os volteios elegantes e graciosos dos beija-flores e das libélulas, a sem cerimônia das borboletas, pousando onde queriam. E, antes que o dia estivesse definitivamente instalado, dizia aos seus amigos invisíveis que não precisava de nenhuma prova da existência de Deus. Estava satisfeito e consciente da sua onipresença, a sua obra o autenticava.
Esses amigos somente ele enxergava. Gente desconhecida, uns solenes, outros simples. Sentia-se à vontade com o avô adotivo paterno, Neco Freire, que lhe transmitia recados para o filho, seu pai, a respeito de assuntos os mais variados, desde o pedido de cautela com certa iniciativa até orientações para a vida de relações.
Felizmente, nascera numa família espírita, onde se acreditava na transmigração das almas a partir da reencarnação. E da possibilidade de comunicação com os que já morreram. Por conta desses dons, tornara-se mal visto pelos companheiros, como fosse uma espécie esquisita.
Imagine-se numa época de extremos saberes, em que pontificava, de um lado, os dogmas religiosos, e do outro uma intolerante ciência que também punha os seus dogmas como verdades absolutas. Onde se situaria uma criança cheia de imaginosos amigos invisíveis, em diálogos diários com o avô falecido?
Reprimiu as revelações, mantendo-as para si mesmo e para um grupo restrito de familiares.
Mas a “fatalidade” o perseguia. Foi estudar no Grupo Escolar Auta de Souza, onde havia nascido a poeta do “Horto” e lá, todos os dias, a notável macaibense postava-se ao seu lado, estimulando-o e o auxiliando nas lições. O menino sabia quando ela chegava porque sentia um forte cheiro de jasmin.
(Certa vez andava no velocípede no chão de mosaicos da sua casa, quando uma figura feminina, muito magra e pequenina, cercada por um halo muito luminoso, atravessou a sala de um a outro vértice, sorrindo para a criança, como um anjo o faria. A primeira reação foi a de gritar para que alguém o socorresse. Depois, foi sendo envolvido por uma paz, um conforto que o relaxou. Teria uns cinco a seis anos. Já era a sua “madrinha” assegurando-lhe proteção)
E ela o acompanhou a vida inteira. Se não aproveitou as orientações recebidas, foi por pura rebeldia ou enfado, um cansaço existencial que acomete os que derivam para outros planos sensoriais, cercando-se de regras e princípios inflexíveis, afastando-os do humano e achegando-os para o divino. Um fardo muito pesado, sobretudo para a criança.
Até hoje não soube porque a iluminada conterrânea o cerca com tanto carinho e tanto zelo. Talvez, cogita, afinidade poética, raízes telúricas, a sua alma peregrina e penitente...
(Pouca gente leu Unamuno, que é recorrente para mim, senão concordaria com o filósofo espanhol quando afirmou que “Aquilo a que chamamos espírito parece-me muito mais material do que aquilo a que chamamos matéria; sinto a minha alma mais manifesta e mais sensível do que o meu corpo.”)
Foi estudar em Natal, no Ginásio Sete de Setembro, depois, no Colégio Marista e finalmente, no Atheneu.
Retornou a Macaiba após casar-se, aos dezoito anos. Em decorrência da responsabilidade assumida, foi trabalhar na Cooperativa Banco Auxiliar do Comércio , de Jessé Freire. Alguns anos depois, foi nomeado para o Instituto do Açúcar e do Álcool, onde trabalhou durante... anos.
Conheci-o na velha Faculdade de Direito da Ribeira, em 1963. Estava no primeiro ano de direito e ele já no quarto ano. Candidato á Presidência do Diretório Acadêmico Amaro Cavalcanti, pelo bloco da esquerda, os estrategistas da sua campanha entendiam que o candidato a Vice-Presidente da sua chapa deveria ser alguém do primeiro ano, a turma mais numerosa, e que polarizasse votos de outros segmentos.
Então eu era ligado aos intelectuais, aos desportistas, pois era um bom atleta de voleibol e de basquete, e também ligado à esquerda. Além disso, segundo os mesmos analistas, depois que aprovaram o meu nome, eu era bem apessoado e “moderno”, dado às festas e eventos sociais, agradando ao eleitorado feminino.
Como já referi nesta mesma série, quando retratei o amigo Manoel Onofre Júnior, da minha chapa só eu fui eleito. E foi a minha desdita, pois, por circunstâncias alheias à minha vontade, assumi a Presidência do Diretório em razão do seu titular haver assumido a Presidência do Diretório Central Universitário. Corria o ano de 1964 e, pelo simples fato de me destacar como liderança estudantil, e no ambiente universitário, fui devidamente estigmatizado, como tantos outros companheiros ditos “de esquerda”.
O meu candidato à presidência, por determinação pessoal conseguiu transferir-se da Delegacia de Natal do IAA para o Rio de Janeiro.
Desatinou-se, e num dia tempestuoso, desaguou no Rio de Janeiro e do ano inteiro. Um peixe fora d´água que se tornou anfíbio. Aprendeu a falar carioca sem sotaque macaibeiro e passou a ser. Andava por Copacabana, Leblon, Ipanema e algures como Marco Polo no Cipão. Depois de gastar tanto as solas dos andadores sapatos, verificou que apesar de diferentes da rua do Pernambuquinho, das Cinco Bocas e do Porto das Macaíbas, os afluentes do rio eram iguais, porque, tal como bem o disse o sábio beiradeiro Manoel Onofre a respeito de sua serra, no “Caçador de Jandaíras”, era Macaíba que levava consigo aonde quer que fosse.
Tentou ser um carioca postiço. Lutou para afastar as suas origens, não por vergonha ou arrependimento, mas porque queria criar raízes, aprumar-se, ter um rumo definido para sentar praça neste mundão de Deus. Afinal, ouvira seu pai dizer, “em Roma como os romanos”. Mimetizar-se, ser igual ao camaleão, o louva-Deus, o bicho-pau, era de boa guia para escapar aos predadores de paus de arara.
Com o tempo, o Rio ficou pequeno, quase um córregozinho para a visão pós-horizontina dele. Afivelou as malas e danou-se pelos ocos do mundo. Só não foi onde não quis, porque não quis. Mas tem sustança para falar de Seca e Meca, do que viu e que quase não acreditou, só dando crédito porque os seus olhos, que a terra há de comer, foram testemunhas de vista, a mais acreditada das provas.
(`Qui pra nós, não é pra mode gabá-lo, mas até conheceu umas figurinhas carimbadas da História do Brasil: Sua Alteza, o Príncipe Dom Eudes de Orleans e Bragança e sua digníssima consorte, a princesa Mercedes, o compositor Herivelto Martins, o cantor e compositor Luiz Vieira, entre outros).
De vez em vez batia uma mistura de calundu com banzo, uma raiva dos costumes estranhos e uma saudade da vida de quintal e de terreiro que tivera, tanta, que o deixava em maus lençóis de edredom em pleno calor.
Abandonou o emprego, onde andava sem sair do lugar, e decidiu fazer um estágio para voltar às origens. Deu por si em Itumbiara, na distante Goiás, onde morava a sua irmã Natércia. Precisava readaptar-se e nada melhor que um mergulho em profundidade nos sertões recônditos do Brasil
Fui revê-lo já iniciado os anos oitenta, graduado pela Faculdade Nacional de Direito.
Eu havia instalado uma editora e ele buscava a publicação do livro “Apólogos do Nascer do Sol”. Então ele prestava assessoria a Valério Mesquita, paradigma-macaibense, na Fundação José Augusto. Ajustamos os detalhes da edição e, desde então, tornamo-nos amigos e, a intimidade me trouxe uma visão mais acurada da alma Janseniana.
Mantinhamos afinidades várias: no gosto pela boa música – as suítes para cello de Bach, interpretadas por Yo-Yo Ma – os amarelos e azuis delirantes, os corvos, os trigais, os girassóis e, as noites estreladas de Van Gogh, o paisagismo sépia de Vermeer, as figuras andróginas e os santificados de Caravaggio; as leituras inquietantes, que nos roubavam o sono e nos punham em estado de dúvida – Saramago, Thomas Hardy, Kazantzakis, Kafka – e o providencial Kardec, o recorrente Kardec.
Também o amor pela natureza e uma especial atração pelos pássaros e pelas flores. O meu amigo ama os canários e as orquídeas; eu, os bemtevis, os golinhas; os jasmins, os bugaris e as açucenas. O jogo de cartas (buraco) sempre em dupla comigo, tendo como adversárias a minha mulher, Jailza e a amiga querida Lélia Silveira; e o cinema.
Assim como eu, também ama os casarões, os velhos abrigos grávidos de história, com uma alma imortal. Por isso habitou por longo tempo o Solar da Madalena, onde se deleitava como se fora donatário de um império. Ali criou cavalos e bois, marrecos, patos imperiais, cisnes, cacatuas, aleitou orquídeas, estimulou jasmineiros, cultivou mais amigos do mundo espiritual, deu à luz livros e composições. Foi um grand seigneur, como lhe é dado ser.
Trato do amigo Jansen Leiros Ferreira, um multifário – escritor, musicista, pintor bissexto, compositor, geneticista, evangelizador com surpreendente fluência verbal e cidadão do mundo, com périplos na Oropa, França e Bahia. Habitante daqui e d´algures, onde o conduza a sua vontade liberta e independente de passarinho nunca exilado nem vítima dos alçapões da vida.
Jansen crê num único repositório da verdade absoluta: a doutrina espírita kardecista, a partir do Evangelho Segundo o Espiritismo. Quanto ao resto tudo se concentra num relativismo que a dialética ajuda a esclarecer. Sectário? Não, crente. Se não fosse essa fé que guarda no destino do homem, na sua verdadeira natureza e condição humana, talvez já tivesse migrado para o nihilismo, tantos e tamanhos foram os desencontros que testemunhou e vivenciou, ele próprio.
Não fosse a certeza que acalenta da existência de uma planilha cármica, proposta pelo próprio ser, onerado pelas obrigações pretéritas não realizadas em trânsito para outra existência, jamais entenderia porque tanto sofrimento e tantas frustrações amealhadas pelos que se conduzem com moderação, equilíbrio e um quê de bondade herdada do Criador, mesmo mesclada pelas nódoas da constituição humana.
Nem porque aqueles que se excetuam do contexto do “povo de Deus” obtém tanto sucesso material, tantos teres e haveres e são donatários do poder , da glória...e da impunidade.
Pacificou-se desde que se descobriu habitante de dois planos sensoriais: um, dito real, que emerge dos sentidos humanos comuns; outro, que se distingue do primeiro porque não se revela pelo olfato, paladar, visão, audição ou tato, embora também possa assim ser expresso, mas pela possibilidade de enxergar, escutar, comunicar-se e sentir com a alma. E até concede como recurso argumentativo – com a mente, para que se aquietem os investigadores (quase dizia os “inquisidores”) científicos.
Quantas e quantas infinitas vezes tresvariou e foi harmonizado pela fé, por amigos invisíveis, que nunca o deixaram em solidão?
E também porque, nessas ocasiões, procura compensar-se, dando testemunho da sua crença e reforço à sua missão evangélica, escrevendo os seus comoventes romances espíritas, de sua própria lavra, embora intuídos pelos habitantes do mundo invisível.
Talvez seja o autor espírita norte-rio-grandense com o maior número de títulos publicados sobre a temática espírita, sem prejuízo da qualidade das escrituras. São obras de ficção com conteúdo moral, destinadas a servirem de referência ao processo de desconstrução e reconstrução do ser humano, no milênio de sua redenção.
Aliás, transijo. Não sei se posso classificá-las como ficção, já que a arte imita a vida e também porque elas ou são sussurradas ao ouvido do meu amigo ou lhes são sugeridas.
Fragmentos de Reflexões, Contos de Entardecer, Apólogos do Nascer do Sol, Prelúdios de um Novo Dia, Adágio de Esperanças (o seu preferido), Sonata do Alvorecer de Aquarius, Garimpando a Luz e o recém-lançado Aleluia do Homem Novo. No prelo, a única obra memorial, as encarnações da irmã Daphne, falecida tragicamente: Daphne – Compromissos e Resgates.
Esse último livro foi escrito a partir do pedido da própria irmã, através de uma médium que participava de um congresso espírita. O autor faz o seguinte relato: “...fui assistir à palestra da médium Marilusa Vasconcelos, portadora de mediunidade pictórica que, em brevíssimo tempo executava quadros representativos dos mais célebres pintores do mundo...De repente fui atraído pelo questionamento de alguém que consultava a platéia para saber se havia algum parente de Daphne. Se houvesse, que subisse ao palco pois havia uma mensagem. Subi e quando a médium me identificou disse-me que a mensagem era a seguinte: “Jansen conte a história das minhas existências. Beije meus pais e minha irmã”.
Em seguida, a médium entregou-me uma tela que mostrava um rosto de mulher envolto em chamas – tal como a minha irmã caçula havia desencarnado.”
O meu amigo tem dupla natureza, eis que usina magnetismo. Nele habitam dois seres antípodas: Janjão e Filisteu.
O primeiro teria sido sanfoneiro nas folganças forrozeiras e nas trabalhosas feiras de Macaíba, daí o nome Janjão Sofoneiro (assim mesmo). Teria sido um espírito bonachão, cheio de prosa e repentes, riso emoldurado na boca escancarada. Um boêmio colecionador de noites de dança, sanfoneios e cerveja. Sem eira nem beira, desenraizado por querer, espalhava-se pelas quebradas do agreste de Coité. Já que só tinha ele, era ele mesmo.
Quando desencarnado, Deus aproveitou a sua alegria e o mandou ser cantor e tocador no coro de anjos. Tornou-se, no plano evolutivo, um missionário contemplativo, mais para o Zen budismo que para o esoterismo. Era esse-um que habitava Jansen: uma alma poética, reflexiva, amante da natureza, mal comparando, um sertanejo diria sem querer ofender, que era como um boi capinando, aquela placidez bovina de quem não sabe a força que tem e não está nem aí para tal sabença. Queria mesmo era poetar, encher os olhos de beleza e estar em paz com Deus.
Aquele-outro era diferente.Olho raiado de vermelho, nó na goela, cara mais trancada que baú de pão-duro, era rancoroso, mandão e brabo. Que ninguém se metesse a besta ou o cipó brocha ou o relho assobiava e o lombo era lenhado. Besta-fera do cangaço, fez trato com o tinhoso para fechar o corpo e encorpar a valentia.
Quando se foi desse mundo, ficou entrevado e, depois de muita teima dos seus benfeitores, encastoou-se em Jansen, para aproveitar a valia de Janjão e o azougue do médium.
Vez em quando, pegava Janjão dormindo e o guardião sanfoneiro de guarda arriada e dava trabalho, apresentando-se como se fosse o pobre do encarnado. Vixe Maria! Aí se espalhava e quem não quisesse sobra que saísse de perto.
Isso explica o vai-e-vem dos bons e maus instantes do meu amigo. Aliás, todos temos os nossos Janjões e Filisteus, com outros nomes. Os mais afortunados e letrados, com nomes impronunciáveis tirados da psicologia e da psiquiatria. Os mais precisados, com “encostos” que atendem pelos nomes conhecidos das artes das mandingas.
Jansen é exímio pianista, tendo sido aluno do Maestro Waldemar de Almeida, Dulce Cicco, Nilda Guerra Cunha Lima, Gerardo Parente e José Kaplan. Estudou canto com a Professora Atenilde Cunha e Nino Crime e regência coral com Pedro Santos e Padre Pedro Ferreira. Criou a “Camerata Oswaldo de Souza” e o “Quinteto Oficina”.
Compositor de uma dezena de peças harmonizadas para orquestra de cordas, estas foram apresentadas em concerto realizado pela referida Camerata, na Aliança Francesa, em homenagem à irmã Daphne.
Orador com fluência verbal e voz empostada, é freqüentemente convidado a proferir palestras nos diversos centros espíritas daqui e de outras cidades.
Seu amor pelos animais em geral e em particular pelas aves o fez pesquisador da genética, processando inúmeros e bem sucedidos cruzamentos. Já foi juiz do Kennel Club do Rio de Janeiro, onde morou, criou cavalos e gado de raça, galinhas e canários belgas, tendo sido presidente da Associação dos Canaricultores do Rn.
Sua maior paixão, no entanto, foi a criação experimental de aves de cor branca, resultado de minuciosa busca e pesquisa de cruzamento genético. No Solar da Madalena, onde morou longo tempo, manteve um plantel composto por galinhas Leghorn, perus, patos marrecos, gansos, guinés, uma cacatua e um bando de cisnes, todos imaculadamente brancos. Por que? Quem sabe...talvez impulso estético, a sublimação da pureza para as aves, seres divinos...
Porque Jansen é um esteta disciplinado. O modo como se veste, com aprumo, método e harmonia uniformista, revelam essa preocupação. Sapatos combinando com cinturão e pulseira do relógio; camisa da cor do mostrador do relógio e das meias; geralmente usa paletó, nesse caso, a gravata tem de se harmonizar com a cor do terno. É um dândi.
Sua formação jurídica o levou à advocacia, em Natal iniciou-se no ofício no escritório de Nei Marinho, depois se estabelecendo como profissional liberal autônomo. Foi juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral, Assessor Jurídico do Estado do Rio Grande do Norte e Presidente do Tribunal de Ètica da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ostenta diversas honrarias – títulos, comendas e homenagens – é sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e membro da União Brasileira de Escritores/Rn.
Atualmente, aposentado do serviço público estadual, pratica a advocacia e é Assessor de Relações Institucionais da Federação do Comércio do Rio Grande do Norte, cargo que exerce com maestria, pois, cidadão do mundo e cultivador de relações pessoais, nada mais faz do que ser o que é.
Mas, os seus maiores galardões talvez tenham sido a de filho do honrado Aguinaldo e da dedicada e terna Leonor, sua mãe – que perdeu a beleza do nome, registrando-se apenas Maria, por esquisitice do tabelião. Pai de seis filhos, muito especialmente da doce Maria Leonor, recolhida por Deus para a semeadura do carinho entre os aflitos. E dez netos. Fechando com chave de ouro o ciclo efêmero do seu trânsito planetário, Deus o abençoou no reencontro com Anair, a que tem sido um pouco do seu quase tudo, a compensação dos muitos sofreres e desencontros, companheira, companheira, companheira...
PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado. Escritor e Advogado.
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